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Eu acho essa discussão interessantíssima, e, neste comentário que farei agora, tentarei ao máximo separar aquilo que é a minha visão, daquilo que outros filósofos e teólogos disseram sobre o assunto.
Com certeza é possível defender essa posição, mas eu não acho que seja isso que o Schopenhauer tenha feito - pelo menos eu não me lembro dele afirmando isso ipsis literis. Há de fato um certo pessimismo na sua visão, mas o sofrimento tende a ser compreendido na sua correlação com a Vontade e com o desejo (enquanto uma forma mais individual).
Por exemplo, se dissemos que um animal é devorado por outro, é inegável que haja sofrimento ali, mas há também afirmação de Vida, afirmação da Vontade. E essa afirmação é uma realização do conatus, o desejo de perseverar na existência, de continuar existindo. Não lembro se esse conceito aparece em Schopenhauer, mas ele está em Spinoza e outros pensadores que vieram antes: é basicamente a disposição biológica dos seres vivos para continuarem existindo, se alimentando, se reproduzindo, e se defendendo quando são ameaçados. E todas estas atitudes naturais ao mesmo tempo conjugam a afirmação da Vida e a produção de sofrimento: porque sentir fome e desejo de comer é um sofrimento; mas também morrer para dar de comer a um outro ser vivo também é outro sofrimento.
Também há uma porção de outros sofrimentos banais, que poderiam ser classificados como pequenos desprazeres da vida comum, e que Schopenhauer parece considerá-los mais em seus elementos cômicos do que em sua qualidade trágica (a tragédia seria o conjunto da existência como um todo).
Outros filósofos antigos, como Epicuro ou Sêneca, tentaram a seu modo resolver este problema do sofrimento. Parece que é uma ideia que já estava bem consolidada tanto na Grécia quanto na Índia, por volta do século IV a.C., de que a condição humana era envolvida pelo problema do sofrimento. Na Índia a solução para esse problema alcançava consequências profundamente espirituais - porque era algo que tinha a ver com a libertação do ciclo de reencarnações. Mas na Grécia isso adquiriu formas mais mundanas - o que significa que o diagnóstico, a raiz do problema, era radicalmente diferente. Para os indianos, transmigrar indefinidamente, viver ora como homem, ora como bicho, ora como rico, ora como pobre, e morrer infinitas vezes sem nunca se realizar plenamente, mergulhado num desejo que nunca se satisfaz de fato, num mundo de impermanência, era algo que só seria solucionado com a interrupção completa deste ciclo.
Para os gregos, por outro lado, isso não tinha a ver com um ciclo de reencarnações, mas com a "roda da fortuna", com a imprevisibilidade dos desígnios desta vida, e que parece, muitas vezes, simplesmente injusta. Soluções diferentes vieram de escolas diferentes: os epicuristas pensavam na moderação dos prazeres e dos apetites, no convívio entre os amigos; os estoicos treinavam e se preparavam para lidar com os possíveis infortúnios e tragédias que iriam enfrentar em algum momento, a morte dos entes queridos, a não-realização de um desejo etc.; alguns hedonistas se dedicariam totalmente ao desfrute dos prazeres de forma inconsequente, ou os cínicos mais radicais, abdicariam de todas as convenções e se concentrariam apenas em si mesmos.
Faço essa digressão porque talvez valha a pena ter em vista que a definição de sofrimento tem a ver com as maneiras pelas quais os sujeitos encontram para lidar com ele - e, sobretudo, qual é a relação do sofrimento com o Mal. Se essa definição de sofrimento é perfeitamente equalizada com a definição do Mal, então este mundo é, em sua essência Mal - e isso depõe totalmente contra a ideia de um Deus bondoso.
Mas se o sofrimento surge apenas como consequência da LIBERDADE do mundo, então ele está desconectado com isso que chamamos de Mal - e o Mal é apenas a categoria dentro da qual algumas intenções são classificadas. O sujeito sádico, que tortura alguém pelo prazer que sente nisso, é alguém que seria tipificado assim, como alguém malévolo, cruel. Todavia, reafirmo aquilo que disse: a satisfação pessoal, o regozijo, o prazer, é uma das formas do Bem - e o sujeito que se satisfaz ao torturar o outro está buscando uma forma PERVERTIDA deste Bem, posto que é uma forma que emerge da contemplação do sofrimento do outro.
Sobre as ações bondosas: eu tendo a observar a ação altruísta de uma perspectiva um pouco mais metafísica. O "bem" que ela produz no seu agente não tem a ver com o desejo ou algum tipo de satisfação pessoal, mas com o reconhecimento de uma natureza humana universal: é a luz conhecendo a si mesma.
Outras duas coisas me chamam a atenção: a natureza do desejo. Me parece que o desejo é o motor que impele para frente a Natureza, a evolução, a aquisição de qualidades, a diferenciação das formas etc. É a liberdade deste desejo que acaba por produzir o sofrimento na medida em que a Vida quer continuar existindo, mas, nas suas infinitas individuações e gradações, ela luta consigo mesma, devora a si mesma, engole a si mesma, contempla a si mesma e embeleza a si mesma.
Mas o desejo, em si, para além dessas determinações do conatus, não tem uma forma definida. Repare nos seres humanos: uma vez satisfeitos nossos desejos mais básicos, estamos livres para desejar o que quisermos. E simplesmente porque não nascemos com nenhum outro desejo além destes, aprendemos a desejar e imitamos os desejos dos outros. Casa; carro; profissão; viagem; estilo. Tudo isso fomos absorvendo ao longo da vida - e na medida em que nada disso está disponível de forma ilimitada na sociedade, entramos em disputas, desencadeando crises de desejo mimético. Essa é a ideia básica do René Girard, por exemplo.
Mas antes disso há uma outra ideia, absolutamente metafísica em sua natureza, com a qual venho flertando há um certo tempo, tentando conciliar isso com o meu budismo: a possibilidade de que este mundo seja obra de uma divindade malévola. Esta é base da filosofia maniqueísta, a seita gnóstica que tem sua origem no profeta Mani. Sei que parece absurdo, mas é algo que apela para o meu lado mais místico, haha. Justamente porque neste mundo a vida não pode prosperar sem sofrimento, sem morte, e porque os desejos nunca são plenamente satisfeitos, porque a alegria nunca é plena, porque nossa existência é limitada e condicionada pelas determinações naturais, que não são boas, este mundo não pode ter sido obra de um Deus bom.
Não é que o Deus bom não exista. Ele existe - mas ele é feito de puro espírito e, portanto, é incapaz de criar. Ele é apenas Luz. Quem cria, pelo contrário, é o Demiurgo - e ele cria modelando a matéria. Mas a sua criação não é boa, porque é envolvida em sofrimento.
Acho essa filosofia bastante sedutora, por mais absurda que seja. Alguém pode ser levado a perguntar: "mas e as coisas boas do mundo?" Com certeza existe alegria, sabedoria, bondade. E isso tudo que é o Bem, na verdade, seria a luz do Deus que é puro espírito penetrando a existência.
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