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O que vocês acham que é Deus ?

  1. #26

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    Eu acho essa discussão interessantíssima, e, neste comentário que farei agora, tentarei ao máximo separar aquilo que é a minha visão, daquilo que outros filósofos e teólogos disseram sobre o assunto.

    Com certeza é possível defender essa posição, mas eu não acho que seja isso que o Schopenhauer tenha feito - pelo menos eu não me lembro dele afirmando isso ipsis literis. Há de fato um certo pessimismo na sua visão, mas o sofrimento tende a ser compreendido na sua correlação com a Vontade e com o desejo (enquanto uma forma mais individual).

    Por exemplo, se dissemos que um animal é devorado por outro, é inegável que haja sofrimento ali, mas há também afirmação de Vida, afirmação da Vontade. E essa afirmação é uma realização do conatus, o desejo de perseverar na existência, de continuar existindo. Não lembro se esse conceito aparece em Schopenhauer, mas ele está em Spinoza e outros pensadores que vieram antes: é basicamente a disposição biológica dos seres vivos para continuarem existindo, se alimentando, se reproduzindo, e se defendendo quando são ameaçados. E todas estas atitudes naturais ao mesmo tempo conjugam a afirmação da Vida e a produção de sofrimento: porque sentir fome e desejo de comer é um sofrimento; mas também morrer para dar de comer a um outro ser vivo também é outro sofrimento.

    Também há uma porção de outros sofrimentos banais, que poderiam ser classificados como pequenos desprazeres da vida comum, e que Schopenhauer parece considerá-los mais em seus elementos cômicos do que em sua qualidade trágica (a tragédia seria o conjunto da existência como um todo).

    Outros filósofos antigos, como Epicuro ou Sêneca, tentaram a seu modo resolver este problema do sofrimento. Parece que é uma ideia que já estava bem consolidada tanto na Grécia quanto na Índia, por volta do século IV a.C., de que a condição humana era envolvida pelo problema do sofrimento. Na Índia a solução para esse problema alcançava consequências profundamente espirituais - porque era algo que tinha a ver com a libertação do ciclo de reencarnações. Mas na Grécia isso adquiriu formas mais mundanas - o que significa que o diagnóstico, a raiz do problema, era radicalmente diferente. Para os indianos, transmigrar indefinidamente, viver ora como homem, ora como bicho, ora como rico, ora como pobre, e morrer infinitas vezes sem nunca se realizar plenamente, mergulhado num desejo que nunca se satisfaz de fato, num mundo de impermanência, era algo que só seria solucionado com a interrupção completa deste ciclo.

    Para os gregos, por outro lado, isso não tinha a ver com um ciclo de reencarnações, mas com a "roda da fortuna", com a imprevisibilidade dos desígnios desta vida, e que parece, muitas vezes, simplesmente injusta. Soluções diferentes vieram de escolas diferentes: os epicuristas pensavam na moderação dos prazeres e dos apetites, no convívio entre os amigos; os estoicos treinavam e se preparavam para lidar com os possíveis infortúnios e tragédias que iriam enfrentar em algum momento, a morte dos entes queridos, a não-realização de um desejo etc.; alguns hedonistas se dedicariam totalmente ao desfrute dos prazeres de forma inconsequente, ou os cínicos mais radicais, abdicariam de todas as convenções e se concentrariam apenas em si mesmos.

    Faço essa digressão porque talvez valha a pena ter em vista que a definição de sofrimento tem a ver com as maneiras pelas quais os sujeitos encontram para lidar com ele - e, sobretudo, qual é a relação do sofrimento com o Mal. Se essa definição de sofrimento é perfeitamente equalizada com a definição do Mal, então este mundo é, em sua essência Mal - e isso depõe totalmente contra a ideia de um Deus bondoso.

    Mas se o sofrimento surge apenas como consequência da LIBERDADE do mundo, então ele está desconectado com isso que chamamos de Mal - e o Mal é apenas a categoria dentro da qual algumas intenções são classificadas. O sujeito sádico, que tortura alguém pelo prazer que sente nisso, é alguém que seria tipificado assim, como alguém malévolo, cruel. Todavia, reafirmo aquilo que disse: a satisfação pessoal, o regozijo, o prazer, é uma das formas do Bem - e o sujeito que se satisfaz ao torturar o outro está buscando uma forma PERVERTIDA deste Bem, posto que é uma forma que emerge da contemplação do sofrimento do outro.

    Sobre as ações bondosas: eu tendo a observar a ação altruísta de uma perspectiva um pouco mais metafísica. O "bem" que ela produz no seu agente não tem a ver com o desejo ou algum tipo de satisfação pessoal, mas com o reconhecimento de uma natureza humana universal: é a luz conhecendo a si mesma.

    Outras duas coisas me chamam a atenção: a natureza do desejo. Me parece que o desejo é o motor que impele para frente a Natureza, a evolução, a aquisição de qualidades, a diferenciação das formas etc. É a liberdade deste desejo que acaba por produzir o sofrimento na medida em que a Vida quer continuar existindo, mas, nas suas infinitas individuações e gradações, ela luta consigo mesma, devora a si mesma, engole a si mesma, contempla a si mesma e embeleza a si mesma.

    Mas o desejo, em si, para além dessas determinações do conatus, não tem uma forma definida. Repare nos seres humanos: uma vez satisfeitos nossos desejos mais básicos, estamos livres para desejar o que quisermos. E simplesmente porque não nascemos com nenhum outro desejo além destes, aprendemos a desejar e imitamos os desejos dos outros. Casa; carro; profissão; viagem; estilo. Tudo isso fomos absorvendo ao longo da vida - e na medida em que nada disso está disponível de forma ilimitada na sociedade, entramos em disputas, desencadeando crises de desejo mimético. Essa é a ideia básica do René Girard, por exemplo.

    Mas antes disso há uma outra ideia, absolutamente metafísica em sua natureza, com a qual venho flertando há um certo tempo, tentando conciliar isso com o meu budismo: a possibilidade de que este mundo seja obra de uma divindade malévola. Esta é base da filosofia maniqueísta, a seita gnóstica que tem sua origem no profeta Mani. Sei que parece absurdo, mas é algo que apela para o meu lado mais místico, haha. Justamente porque neste mundo a vida não pode prosperar sem sofrimento, sem morte, e porque os desejos nunca são plenamente satisfeitos, porque a alegria nunca é plena, porque nossa existência é limitada e condicionada pelas determinações naturais, que não são boas, este mundo não pode ter sido obra de um Deus bom.

    Não é que o Deus bom não exista. Ele existe - mas ele é feito de puro espírito e, portanto, é incapaz de criar. Ele é apenas Luz. Quem cria, pelo contrário, é o Demiurgo - e ele cria modelando a matéria. Mas a sua criação não é boa, porque é envolvida em sofrimento.

    Acho essa filosofia bastante sedutora, por mais absurda que seja. Alguém pode ser levado a perguntar: "mas e as coisas boas do mundo?" Com certeza existe alegria, sabedoria, bondade. E isso tudo que é o Bem, na verdade, seria a luz do Deus que é puro espírito penetrando a existência.
    Maravilha de texto.

    Não vou conseguir acompanhar agora todos os pontos interessantes levantados. Mas tenho em mãos algumas passagens do Schopenhauer que podem contribuir com a interpretação do ponto que levantei no post anterior. É claro que a interpretação de todo filósofo dessa estatura se presta a muitas divergências legítimas, e certamente é possível encontrar passagens que permitem leituras distintas. Mas acho que é bastante forte a tese de que ele realmente acredita que, do ponto da experiência humana, a única realidade ontologicamente positiva é a dor/sofrimento. A felicidade e a satisfação têm um estatuto meramente negativo, como comentei.

    Querer e esforçar-se são sua [do ser humano] única essência,
    comparável a uma sede insaciável. A base de todo querer,
    entretanto, é necessidade, carência, logo, sofrimento, ao qual
    consequentemente o homem está destinado originariamente pelo seu
    ser. (O Mundo como..., 2005, p. 401)

    O desejo, por sua própria natureza, é dor; já a satisfação logo
    provoca saciedade: o fim fora apenas aparente: a posse elimina a
    excitação, porém o desejo, a necessidade aparece em nova figura;
    quando não, segue-se o langor, o vazio, o tédio, contra os quais a luta
    é tão atormentadora quanto contra a necessidade. (p. 404)

    mediante as mais universais de todas as considerações, através da
    investigação dos primeiros princípios elementares da vida humana,
    que esta, em conformidade com sua índole, não é passível de nenhuma
    verdadeira bem-aventurança mas em essência é um sofrimento
    multifacetado e um estado desafortunado em variados aspectos (O Mundo como...,
    p. 416).

    Como você comentou, a ideia básica é a conexão entre o desejo e a Vontade. O problema é que ele vê a manifestação concreta dessa vontade com lentes altamente trágicas, sendo as satisfações que temos mero fruto ou de ignorância/ilusão ou de pequenos silenciamentos conscientes dessa Vontade. Daí a relação entre o pensamento dele e algumas vertentes orientais (que se aproximam do que você comentou sobre o ciclo de reencarnações, e que certamente você conhece muito bem) que pregam um certo "vazio" interior, no sentido de eliminar todos os desejos, paralisando, dentro do possível, o ciclo interminável de expressão dessa Vontade na experiência de cada um de nós. Esse silenciamento, que é ao mesmo tempo uma luta contra a "vontade de vida", seria a única "satisfação" real, o que torna transparente o estatuto de fato meramente negativo e secundário da satisfação/felicidade.

    Quanto a questão mais ampla do 'bem' e do 'mal', acho que no exemplo do sadismo você de certa forma repetiu a interpretação que eu considero limitada: a pessoa sádica certamente tem um bem em mente, mas a leitura do que está em jogo não deve se restringir a ela. Num ato corriqueiro, podemos olhar para o agente, para o 'recipiente' e para o conjunto da obra. Olhando para o conjunto da obra podemos perfeitamente concluir que o bem que a pessoa buscava para si é um mal para o mundo (e, portanto, para todos os efeitos, é um mal). Mas enfim, não sei se li direito o que você disse e, como comentei, não tenho condições (agora), de desenvolver todo o raciocínio com a devida profundidade. Espero que a discussão prossiga.

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  3. #27

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    Maravilha de texto.

    Não vou conseguir acompanhar agora todos os pontos interessantes levantados. Mas tenho em mãos algumas passagens do Schopenhauer que podem contribuir com a interpretação do ponto que levantei no post anterior. É claro que a interpretação de todo filósofo dessa estatura se presta a muitas divergências legítimas, e certamente é possível encontrar passagens que permitem leituras distintas. Mas acho que é bastante forte a tese de que ele realmente acredita que, do ponto da experiência humana, a única realidade ontologicamente positiva é a dor/sofrimento. A felicidade e a satisfação têm um estatuto meramente negativo, como comentei.

    Querer e esforçar-se são sua [do ser humano] única essência,
    comparável a uma sede insaciável. A base de todo querer,
    entretanto, é necessidade, carência, logo, sofrimento, ao qual
    consequentemente o homem está destinado originariamente pelo seu
    ser. (O Mundo como..., 2005, p. 401)

    O desejo, por sua própria natureza, é dor; já a satisfação logo
    provoca saciedade: o fim fora apenas aparente: a posse elimina a
    excitação, porém o desejo, a necessidade aparece em nova figura;
    quando não, segue-se o langor, o vazio, o tédio, contra os quais a luta
    é tão atormentadora quanto contra a necessidade. (p. 404)

    mediante as mais universais de todas as considerações, através da
    investigação dos primeiros princípios elementares da vida humana,
    que esta, em conformidade com sua índole, não é passível de nenhuma
    verdadeira bem-aventurança mas em essência é um sofrimento
    multifacetado e um estado desafortunado em variados aspectos (O Mundo como...,
    p. 416).

    Como você comentou, a ideia básica é a conexão entre o desejo e a Vontade. O problema é que ele vê a manifestação concreta dessa vontade com lentes altamente trágicas, sendo as satisfações que temos mero fruto ou de ignorância/ilusão ou de pequenos silenciamentos conscientes dessa Vontade. Daí a relação entre o pensamento dele e algumas vertentes orientais (que se aproximam do que você comentou sobre o ciclo de reencarnações, e que certamente você conhece muito bem) que pregam um certo "vazio" interior, no sentido de eliminar todos os desejos, paralisando, dentro do possível, o ciclo interminável de expressão dessa Vontade na experiência de cada um de nós. Esse silenciamento, que é ao mesmo tempo uma luta contra a "vontade de vida", seria a única "satisfação" real, o que torna transparente o estatuto de fato meramente negativo e secundário da satisfação/felicidade.

    Quanto a questão mais ampla do 'bem' e do 'mal', acho que no exemplo do sadismo você de certa forma repetiu a interpretação que eu considero limitada: a pessoa sádica certamente tem um bem em mente, mas a leitura do que está em jogo não deve se restringir a ela. Num ato corriqueiro, podemos olhar para o agente, para o 'recipiente' e para o conjunto da obra. Olhando para o conjunto da obra podemos perfeitamente concluir que o bem que a pessoa buscava para si é um mal para o mundo (e, portanto, para todos os efeitos, é um mal). Mas enfim, não sei se li direito o que você disse e, como comentei, não tenho condições (agora), de desenvolver todo o raciocínio com a devida profundidade. Espero que a discussão prossiga.
    Exato, é isso mesmo.

    Mas eis a pergunta: o sofrimento é o Mal?

    Ou seria o sofrimento a negação da Vida?

    Porque aí a gente volta pro problema que eu tentei expor: não existe o Mal em si, enquanto substância - apenas enquanto negação da Vida (Vontade). O que possui essência é a Vontade (mas, para o Schopenhauer, como ela é envolvida pela Representação, nunca podemos conhecê-la realmente). Agora, como a Vida em si é marcada por esse sofrimento - é isso que a empurra para frente, então não dá pra dizer que a existência seja em si uma coisa boa. Isso pra mim inverte a lógica daquela situação antiga identificada pela teologia cristã, segundo a qual o Bem é o Ser, e o Mal é o Não-Ser - porque aqui, neste caso, o Ser está em si mesmo envolvido e mergulhado em sofrimento.

    O exemplo da pessoa sádica levanta vários problemas. Um dos problemas está naquilo que você menciona aqui, que diz respeito ao juízo individual versus juízo coletivo.

    A este problema do juízo poderíamos acrescentar uma variante: o tempo.

    Ora: o sacrifício humano na sociedade cartaginesa, maia ou asteca, era visto como algo benéfico e positivo para a comunidade como um todo. Hoje, temos absoluta convicção de que isto é um mal.

    Então, na medida em que inúmeros exemplos de nossa conduta são motivados por hábitos de origem cultural/coletiva, segundo uma estrutura que os motiva e os sanciona, quem de nós está realmente pleno em seu juízo para decidir o que é bom ou mal?

    Aí podemos localizar um tipo de sabedoria que surge em vários lugares do mundo, em momentos diferentes, e que aponta para a reciprocidade como o elemento lógico e estruturante de uma ética comum. Segundo esta lógica, a violência é sempre um mal, tanto assim como a mentira, o roubo etc. Mas na lógica da reciprocidade é possível chegar a um mínimo denominador comum - que o Kant identificou como razão prática, e que Confúcio chamou de ren.

    Essa métrica ética estabeleceu um tipo de base moral comum universal - no sentido de que pode ser identificada por qualquer pessoa em qualquer época. E eu concordo que se trata de uma orientação iluminada na direção do Bem - o Bem comum que se funda numa intuição individual correta. Mas não há garantia nenhuma de que isso perdure, de que isso se sustente, posto que está o tempo todo sob ataque, sob arranjos culturais que legitimam a violência segundo rivalidades, ameaças externas (e internas), fantasmagorias e ficções.
    Editado por Lanzi em 01-04-2024 às 23:24

  4. #28

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    Exato, é isso mesmo.

    Mas eis a pergunta: o sofrimento é o Mal?

    Ou seria o sofrimento a negação da Vida?
    Se essas fossem as únicas duas opções, acho que nenhuma estaria correta, embora a primeira estivesse mais próxima da ideia do Schopenhauer, a meu ver. Pra ele a vida é o sofrimento, então não faria sentido dizer que o sofrimento é a negação da vida. O sofrimento é amenizado justamente quando se nega e se silencia a vontade de vida.

    Mas o "mal" em termos morais é de fato distinto disso, embora a minha leitura do texto dele também tenha me levado a concluir que o mal é essencial, e o bem é apenas secundário. Tem passagens em que ele afirma isso também, com a mesma estrutura das passagens que postei anteriormente. E isso não apenas porque o sofrimento em si é ruim, mas também porque a natureza essencialmente "egoísta" (a Vontade de que somos feitos e que nos move só muito pontualmente é capaz de inserir "o outro" em sua afirmação) e mesmo desejosa de ver a dor alheia (ele usa em alguma parte do texto o exemplo do prazer que as pessoas sentem vendo os outros "se lascando").

    Aliás, é muito curioso esse maluco hhuauha, tem uma parte do texto em que ele define o próprio ato de andar das pessoas como um "evitação da queda" ou algo assim. Ou seja, primeiro sempre vem a queda, a dor, o egoísmo, a maldade; e só depois, com muitos freios e abstrações (com muita "representação") é que vem o que costumamos chamar de "bem". Pra mim isso é um exagero tremendo e quase óbvio, mas acho que é assim que ele via as coisas.

    Porque aí a gente volta pro problema que eu tentei expor: não existe o Mal em si, enquanto substância - apenas enquanto negação da Vida (Vontade). O que possui essência é a Vontade (mas, para o Schopenhauer, como ela é envolvida pela Representação, nunca podemos conhecê-la realmente). Agora, como a Vida em si é marcada por esse sofrimento - é isso que a empurra para frente, então não dá pra dizer que a existência seja em si uma coisa boa. Isso pra mim inverte a lógica daquela situação antiga identificada pela teologia cristã, segundo a qual o Bem é o Ser, e o Mal é o Não-Ser - porque aqui, neste caso, o Ser está em si mesmo envolvido e mergulhado em sofrimento.

    O exemplo da pessoa sádica levanta vários problemas. Um dos problemas está naquilo que você menciona aqui, que diz respeito ao juízo individual versus juízo coletivo.

    A este problema do juízo poderíamos acrescentar uma variante: o tempo.

    Ora: o sacrifício humano na sociedade cartaginesa, maia ou asteca, era visto como algo benéfico e positivo para a comunidade como um todo. Hoje, temos absoluta convicção de que isto é um mal.

    Então, na medida em que inúmeros exemplos de nossa conduta são motivados por hábitos de origem cultural/coletiva, segundo uma estrutura que os motiva e os sanciona, quem de nós está realmente pleno em seu juízo para decidir o que é bom ou mal?
    Acho que a tua primeira frase nesse trecho é um dos pontos que precisamos esclarecer. Não vejo sentido algum em qualquer frase que remeta a ideia de que, para o Schopenhauer, o mal ou o sofrimento é negação da vida (ou negação da Vontade). É justamente todo o oposto. As únicas coisas "boas" da vida surgem justamente da negação e do silenciamento da Vontade. Eu posso estar lendo errado, mas aí vários comentadores e especialistas no assunto também estão rs.

    Esse exemplo do sacrifício cultural que você mencionou distorce um pouco o problema do sadismo. Nesse exemplo, as pessoas reconheciam o sacrifício justamente por reconhecer também os seus frutos gerais. O sadismo é caracterizado justamente por sua gratuidade geral.

    Um outro detalhe que acho importante é esse de que a Vontade não poderia ser "realmente" conhecida. Aqui tudo depende do que se tem em mente por "realmente" rs. Vale notar que o projeto do Schopenhauer tem como um de seus motivos justamente a contraposição a Kant, este sim apóstolo da impossibilidade de conhecer a realidade "em si". O Schopenhauer defende que a realidade (neste caso, a próprio Vontade) pode sim ser conhecida. E é justamente desse conhecimento, que é um tipo de conhecimento de si mesmo (na medida em que o sujeito é objetivação e expressão da Vontade). Mas aí a coisa já fica mais complicada ainda rs.

  5. #29

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    Se essas fossem as únicas duas opções, acho que nenhuma estaria correta, embora a primeira estivesse mais próxima da ideia do Schopenhauer, a meu ver. Pra ele a vida é o sofrimento, então não faria sentido dizer que o sofrimento é a negação da vida. O sofrimento é amenizado justamente quando se nega e se silencia a vontade de vida.

    Mas o "mal" em termos morais é de fato distinto disso, embora a minha leitura do texto dele também tenha me levado a concluir que o mal é essencial, e o bem é apenas secundário. Tem passagens em que ele afirma isso também, com a mesma estrutura das passagens que postei anteriormente. E isso não apenas porque o sofrimento em si é ruim, mas também porque a natureza essencialmente "egoísta" (a Vontade de que somos feitos e que nos move só muito pontualmente é capaz de inserir "o outro" em sua afirmação) e mesmo desejosa de ver a dor alheia (ele usa em alguma parte do texto o exemplo do prazer que as pessoas sentem vendo os outros "se lascando").

    Aliás, é muito curioso esse maluco hhuauha, tem uma parte do texto em que ele define o próprio ato de andar das pessoas como um "evitação da queda" ou algo assim. Ou seja, primeiro sempre vem a queda, a dor, o egoísmo, a maldade; e só depois, com muitos freios e abstrações (com muita "representação") é que vem o que costumamos chamar de "bem". Pra mim isso é um exagero tremendo e quase óbvio, mas acho que é assim que ele via as coisas
    Acho que nesse ponto ficou bem explícita a confusão que faço entre o que eu penso, as minhas definições, e aquilo que o Schopenhauer pensa (em termos de definições e semântica). Eu li O Mundo como Vontade e Representaçào há mais ou menos 10 anos, antes de ter lido me familiarizado com algumas discussões e obras cuja leitura costuma ser exigida antes dessa, como o próprio Kant. Entào foi uma leitura bem assistemática. De qualquer forma, podemos discutir isso entre nós tomando o Schopen apenas como referência - já que eu nào teria como nessa altura discutir a obra dele.

    Quando se diz que o mal é essencial, por exemplo, isso não tem o mesmo sentido que dizer que ele tem uma essência (ousia). Aí ele seria essencial apenas porque participa da vida como um todo. Ele pode ser de fato um aspecto recorrente da vida, e mesmo assim não possuir essência alguma - tal como a metáfora da sombra e da luz. Mas, realmente, se advogamos em favor da ideia de que o bem é sempre egoísta, movida apenas pelo desejo de sobrevivência ou então desejos mesquinhos, haveremos de concordar que o Mal se sobressai, e que o Bem verdadeio não tem lugar nessa existência.

    Mas você concorda com isso? Porque eu não.

    E me lembro que em vários momentos o Schopen dá indícios de crer numa categoria especial de indivíduos que transcendem essas determinações, são capazes de grande sacrifício e alcançam graus equivalentes a uma certa santidade. Nisso ele parecia se diferenciar do Nietzsche.

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    Acho que a tua primeira frase nesse trecho é um dos pontos que precisamos esclarecer. Não vejo sentido algum em qualquer frase que remeta a ideia de que, para o Schopenhauer, o mal ou o sofrimento é negação da vida (ou negação da Vontade). É justamente todo o oposto. As únicas coisas "boas" da vida surgem justamente da negação e do silenciamento da Vontade. Eu posso estar lendo errado, mas aí vários comentadores e especialistas no assunto também estão rs.
    Você se lembra do que o Schopenhauer diz sobre a arte, e especialmente sobre a música? Equanto expressões da Vontade ele parece ter isso em alta conta sob um registro positivo, com um conteúdo real e de embelezamento da existência. Isso também não vai na direçào contrária ao sofrimento, na medida em que alivia o peso da existência e produz uma vida mais amena?

    Sobre o lance da afirmaçào da vida, pra esclarecer, isso é algo que estou afirmando independentemente do que ele diz.

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    Esse exemplo do sacrifício cultural que você mencionou distorce um pouco o problema do sadismo. Nesse exemplo, as pessoas reconheciam o sacrifício justamente por reconhecer também os seus frutos gerais. O sadismo é caracterizado justamente por sua gratuidade geral.
    A ideia foi dar um exemplo diferente mesmo tendo em vista o problema sobre o juízo do bem, chamando a atenção pro fato de que isso tende a se transformar de acordo com o tempo e o lugar - o que é algo realmente um tanto óbvio. Mas o mecanismo do sacrifício, apesar de diminuir sua violência, se prolonga pra outros contextos sob a ideia de um bode espiatório. Neste caso, não há sadismo envolvido, mas um mecanismo que tem sua violência justificada com o propósito de produzir um bem comum.

    No caso do sujeito sádico, por ser reduzido a uma dimensão individual, parte do seu comportamento parece poder ser explicado enquanto um tipo de desvio, ou perversão. Sob certas condições culturais específicas, esse tipo de violência/Mal, consegue encontrar justificativas plenamente racionais para sua realização, ora enquanto elimina a sua própria responsabilidade, ou então quando reclama para si mesmo uma força justiçadora. Hannah Arendt e Theodor Adorno poderiam servir como alguns bem sucedidos de teorizações em torno disso.

    Mas, num plano mais individual, pode ser um caso absoluto de transtorno do qual se ausenta qualquer forma de empatia. O fato de que pode haver um consenso social a respeito de um sujeito desses, enquadrado como psicopata, parece apontar para uma atenuação destas formas violentas que em outras épocas poderiam encontrar um lugar de exercício na sociedade.

  6. #30

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    Acho que nesse ponto ficou bem explícita a confusão que faço entre o que eu penso, as minhas definições, e aquilo que o Schopenhauer pensa (em termos de definições e semântica). Eu li O Mundo como Vontade e Representaçào há mais ou menos 10 anos, antes de ter lido me familiarizado com algumas discussões e obras cuja leitura costuma ser exigida antes dessa, como o próprio Kant. Entào foi uma leitura bem assistemática. De qualquer forma, podemos discutir isso entre nós tomando o Schopen apenas como referência - já que eu nào teria como nessa altura discutir a obra dele.

    Quando se diz que o mal é essencial, por exemplo, isso não tem o mesmo sentido que dizer que ele tem uma essência (ousia). Aí ele seria essencial apenas porque participa da vida como um todo. Ele pode ser de fato um aspecto recorrente da vida, e mesmo assim não possuir essência alguma - tal como a metáfora da sombra e da luz. Mas, realmente, se advogamos em favor da ideia de que o bem é sempre egoísta, movida apenas pelo desejo de sobrevivência ou então desejos mesquinhos, haveremos de concordar que o Mal se sobressai, e que o Bem verdadeio não tem lugar nessa existência.

    Mas você concorda com isso? Porque eu não.

    E me lembro que em vários momentos o Schopen dá indícios de crer numa categoria especial de indivíduos que transcendem essas determinações, são capazes de grande sacrifício e alcançam graus equivalentes a uma certa santidade. Nisso ele parecia se diferenciar do Nietzsche.



    Você se lembra do que o Schopenhauer diz sobre a arte, e especialmente sobre a música? Equanto expressões da Vontade ele parece ter isso em alta conta sob um registro positivo, com um conteúdo real e de embelezamento da existência. Isso também não vai na direçào contrária ao sofrimento, na medida em que alivia o peso da existência e produz uma vida mais amena?

    Sobre o lance da afirmaçào da vida, pra esclarecer, isso é algo que estou afirmando independentemente do que ele diz.



    A ideia foi dar um exemplo diferente mesmo tendo em vista o problema sobre o juízo do bem, chamando a atenção pro fato de que isso tende a se transformar de acordo com o tempo e o lugar - o que é algo realmente um tanto óbvio. Mas o mecanismo do sacrifício, apesar de diminuir sua violência, se prolonga pra outros contextos sob a ideia de um bode espiatório. Neste caso, não há sadismo envolvido, mas um mecanismo que tem sua violência justificada com o propósito de produzir um bem comum.

    No caso do sujeito sádico, por ser reduzido a uma dimensão individual, parte do seu comportamento parece poder ser explicado enquanto um tipo de desvio, ou perversão. Sob certas condições culturais específicas, esse tipo de violência/Mal, consegue encontrar justificativas plenamente racionais para sua realização, ora enquanto elimina a sua própria responsabilidade, ou então quando reclama para si mesmo uma força justiçadora. Hannah Arendt e Theodor Adorno poderiam servir como alguns bem sucedidos de teorizações em torno disso.

    Mas, num plano mais individual, pode ser um caso absoluto de transtorno do qual se ausenta qualquer forma de empatia. O fato de que pode haver um consenso social a respeito de um sujeito desses, enquadrado como psicopata, parece apontar para uma atenuação destas formas violentas que em outras épocas poderiam encontrar um lugar de exercício na sociedade.
    Eu tava dando uma puxada na discussão pro lado do Schopenhauer justamente pra não me estender muito nesses outros aspectos, já que são assuntos para os quais eu teria que pensar mais do que estou disposto a pensar nesses dias aqui no fórum Clique para abrir a imagem em nova guia

    Em linhas mais gerais, discordo do Schopenhauer. Acho que a teoria dele é muito relevante pra entendermos um tipo de postura perante a vida que pode de fato ser o que ele diz. É muito fácil "nos deixarmos levar" por esse ciclo incessante de oscilação entre a carência e o tédio (em certo sentido a experiência humana no mundo poderia ser muito bem explicada a partir dessas lentes). Mas acho que a vida pode ser muito diferente disso, e não apenas por negação dessa estrutura básica (que dá pra chamar de "vontade de vida", pra não perder a referência biológica). Pra mim uma das coisas mais "reveladoras" nesse sentido foi descobrir que a própria teoria do egoísmo, como geralmente a entendemos, é um erro. A nossa espécie evolui buscando satisfazer as necessidades de vida, mas essa busca nunca foi solitária. Somos animais sociais, de modo que a nossa própria vontade de vida é também uma vontade de estar aliado aos outros. E isso, por si, abre um mar de ricas interpretações sobre o que é ser um humano. O altruísmo aqui não é uma simples anulação do egoísmo. Um é parte do outro.

    No Schopenhauer acho que a única possibilidade de leitura menos pessimista aparece nesse aspecto que você comentou sobre a experiência estética. Eu sinceramente não lembro bem como ele se refere a isso, mas lembro que de fato essa é uma das únicas coisas "genuinamente positivas" da vida, segundo ele. Mas mesmo que seja exatamente assim, ainda continua sendo quase que uma embriaguez, que, embora real e viva (no sentido de ser expressão/fruição direta da Vontade) é como um momento de fuga da nossa condição geral. Foi essa a chave de leitura que encontrei pra compatibilizar isso com o restante da teoria (vide as passagens que citei, por exemplo).

    Partindo dessa leitura que esbocei acima, de que somos "altruístas" por natureza, na medida em que a nossa natureza é social, acho que fica bem mais fácil explicar tanto o bem como o mal. O bem é conseguir viver com os outros de uma forma harmoniosa. É conseguir expressar a sua própria vida, "crescer" e se engajar de uma forma satisfatória com a vida sem precisar, pra isso, impedir que os outros também cresçam e se satisfaçam. O mal surge dos desvios a isso. O próprio caso dos "sádicos" parece favorecer essa leitura. Esse pessoal que sai matando todo mundo (aqui já teríamos que definir os limites do que é sadismo, mas pros fins dessa discussão acho que isso não é problema) geralmente teve problemas muito sério de convívio com os outros. Mas claro, dizendo assim a coisa fica muito simplificada.

    O grande problema do mal acho que encontra um exemplo justamente na Arendt, que você citou. As maiores maldades do nazismo não foram praticadas por sádicos, mas por pessoas que simplesmente "cumprem ordens" ou algo do tipo. E isso acontece quando a sociedade se estrutura de uma maneira em que a "sobrevivência" ou o "crescimento" e a fruição de um grupo parece exigir o extermínio de outro. Estamos perto demais disso pra ignorar quão real isso é.

    Ainda sobre essa questão do mal, a sua "negatividade" fica clara na necessidade que as pessoas tem de "desumanizar" o alvo pra conseguirem conviver com a ideia de que esse alvo precisa ser exterminado. O pessoal que tem experiência de guerra diz que o maior problema de um batalhão não é o medo dos soldados de morrer, mas o "medo" de matar. Isso também reforça essa tese de que "por natureza" não queremos destruir os outros.

    Enfim, tudo isso pra dizer que eu acho que por natureza somos sociais, e portanto "bons" uns para os outros antes de sermos maus. Ocorre que não nascemos prontos, e é ao longo do percurso do nosso amadurecimento, principalmente pelas formas patológicas e destrutivas com que as nossas sociedades se organizam, que as "maldades" começam a aparecer. A lógica individualista é, nesse sentido, uma das coisas mais aberrantes que podem existir. No entanto, é a nossa forma padrão de ler e constituir o engajamento com o mundo e com a vida.

  7. #31

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    Em linhas mais gerais, discordo do Schopenhauer. Acho que a teoria dele é muito relevante pra entendermos um tipo de postura perante a vida que pode de fato ser o que ele diz. É muito fácil "nos deixarmos levar" por esse ciclo incessante de oscilação entre a carência e o tédio (em certo sentido a experiência humana no mundo poderia ser muito bem explicada a partir dessas lentes). Mas acho que a vida pode ser muito diferente disso, e não apenas por negação dessa estrutura básica (que dá pra chamar de "vontade de vida", pra não perder a referência biológica). Pra mim uma das coisas mais "reveladoras" nesse sentido foi descobrir que a própria teoria do egoísmo, como geralmente a entendemos, é um erro. A nossa espécie evolui buscando satisfazer as necessidades de vida, mas essa busca nunca foi solitária. Somos animais sociais, de modo que a nossa própria vontade de vida é também uma vontade de estar aliado aos outros. E isso, por si, abre um mar de ricas interpretações sobre o que é ser um humano. O altruísmo aqui não é uma simples anulação do egoísmo. Um é parte do outro.

    Estou totalmente de acordo com isso aqui. Se um dia tiver tempo e disponibilidade, sugiro a leitura do livro Esferas 1: Bolhas, do filósofo alemão Peter Sloterdijk. É uma série de 3 livros que ele escreveu partindo do conceito de esfera. O primeiro, o único que foi traduzido pro português, se chama Bolhas - os outros dois são Globos e Espumas.

    Basicamente o que ele propõe é uma outra filosofia da natureza sob uma perspectiva mais vitalizante, a partir da qual o sujeito pode ser compreendido através desse sopro de ânimo, de vida, que lhe inspira a viver, e que vem de seu entorno, de sua bolha de convívio. Como nenhuma bolha pode durar para sempre, a ruptura com estes "espaços seguros" e "inspiradores", desde o ambiente mais materno, são sempre marcados por traumas e situações que redefinem o nosso caráter - e na mesma medida vamos redefinindo bolhas cada vez maiores, transferindo nosso poder de habitação para espaços sempre mais amplos. Um sujeito deslocado de qualquer bolha, sem um lugar onde possa habitar, sem um grupo ou alguém que lhe inspire, acaba flutuando nessa paisagem pessimista semelhante a um Schopenhauer, a um Camus - é quando surge o estranhamento do mundo, a desconexão, e o sujeito perde vitalidade. Ainda assim, é claro, ele é capaz de grandes obras, mas não é uma existência que ele tem a vontade de celebrar.



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    No Schopenhauer acho que a única possibilidade de leitura menos pessimista aparece nesse aspecto que você comentou sobre a experiência estética. Eu sinceramente não lembro bem como ele se refere a isso, mas lembro que de fato essa é uma das únicas coisas "genuinamente positivas" da vida, segundo ele. Mas mesmo que seja exatamente assim, ainda continua sendo quase que uma embriaguez, que, embora real e viva (no sentido de ser expressão/fruição direta da Vontade) é como um momento de fuga da nossa condição geral. Foi essa a chave de leitura que encontrei pra compatibilizar isso com o restante da teoria (vide as passagens que citei, por exemplo).
    Fiz a pergunta porque, se a Vontade é algo diretamente ligado ao sofrimento, e a música é uma expressão da Vontade, como pode a música ser algo que atenua a experiência vital do sofrimento? Por isso acho que o sofrimento deve ter algo a ver com a negação da Vontade, e não com a sua afirmação.

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    Partindo dessa leitura que esbocei acima, de que somos "altruístas" por natureza, na medida em que a nossa natureza é social, acho que fica bem mais fácil explicar tanto o bem como o mal. O bem é conseguir viver com os outros de uma forma harmoniosa. É conseguir expressar a sua própria vida, "crescer" e se engajar de uma forma satisfatória com a vida sem precisar, pra isso, impedir que os outros também cresçam e se satisfaçam. O mal surge dos desvios a isso. O próprio caso dos "sádicos" parece favorecer essa leitura. Esse pessoal que sai matando todo mundo (aqui já teríamos que definir os limites do que é sadismo, mas pros fins dessa discussão acho que isso não é problema) geralmente teve problemas muito sério de convívio com os outros. Mas claro, dizendo assim a coisa fica muito simplificada.
    Estou de acordo com isso aqui também.

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    O grande problema do mal acho que encontra um exemplo justamente na Arendt, que você citou. As maiores maldades do nazismo não foram praticadas por sádicos, mas por pessoas que simplesmente "cumprem ordens" ou algo do tipo. E isso acontece quando a sociedade se estrutura de uma maneira em que a "sobrevivência" ou o "crescimento" e a fruição de um grupo parece exigir o extermínio de outro. Estamos perto demais disso pra ignorar quão real isso é.

    Ainda sobre essa questão do mal, a sua "negatividade" fica clara na necessidade que as pessoas tem de "desumanizar" o alvo pra conseguirem conviver com a ideia de que esse alvo precisa ser exterminado. O pessoal que tem experiência de guerra diz que o maior problema de um batalhão não é o medo dos soldados de morrer, mas o "medo" de matar. Isso também reforça essa tese de que "por natureza" não queremos destruir os outros.
    Então, acho que cheguei a tangenciar isso aqui numa das minhas postagens anteriores, quando sugeri um indivíduo que é capaz de justificar pra si mesmo a tortura de um outro. O nazista que tortura um judeu por exemplo pode racionalizar este ato de vilania se baseando em uma suposta equanimidade em diferentes níveis: na desumanização do judeu, tanto faz, não importa se ele sofra não. Mas, colaborando com isso, também há toda uma ideologia que autoriza e libera esse nazista pra agir assim porque o judeu é responsabilizado por uma porção de outros problemas sociais, então também se trata de uma vingança. Não só não importa que ele sofra, mas ele merece sofrer, segundo esta ótica.

    Daí é perfeitamente admissível que existam certos mecanismos ideológicos vis e malévolos na maneira com que eles funcionam. Acho que o René Girard percebeu isso ao falar do mecanismo vitimário do bode espiatório: uma vítima escolhida arbitrariamente pra selar um pacto sacrificial que restaura a sociedade à situação anterior à sua crise.

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    Enfim, tudo isso pra dizer que eu acho que por natureza somos sociais, e portanto "bons" uns para os outros antes de sermos maus. Ocorre que não nascemos prontos, e é ao longo do percurso do nosso amadurecimento, principalmente pelas formas patológicas e destrutivas com que as nossas sociedades se organizam, que as "maldades" começam a aparecer. A lógica individualista é, nesse sentido, uma das coisas mais aberrantes que podem existir. No entanto, é a nossa forma padrão de ler e constituir o engajamento com o mundo e com a vida.
    Aqui eu tentaria trazer a minha interpretação gnóstica que sugere a criação de um demiurgo malévolo e da aparição de uma luz bondosa no seio dessa criação que começa a reorientá-la na direção do bem.

    Mas aí é viagem demais, hahahaha.
    Editado por Lanzi em 09-04-2024 às 12:05

  8. #32

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    Estou totalmente de acordo com isso aqui. Se um dia tiver tempo e disponibilidade, sugiro a leitura do livro Esferas 1: Bolhas, do filósofo alemão Peter Sloterdijk. É uma série de 3 livros que ele escreveu partindo do conceito de esfera. O primeiro, o único que foi traduzido pro português, se chama Bolhas - os outros dois são Globos e Espumas.

    Basicamente o que ele propõe é uma outra filosofia da natureza sob uma perspectiva mais vitalizante, a partir da qual o sujeito pode ser compreendido através desse sopro de ânimo, de vida, que lhe inspira a viver, e que vem de seu entorno, de sua bolha de convívio. Como nenhuma bolha pode durar para sempre, a ruptura com estes "espaços seguros" e "inspiradores", desde o ambiente mais materno, são sempre marcados por traumas e situações que redefinem o nosso caráter - e na mesma medida vamos redefinindo bolhas cada vez maiores, transferindo nosso poder de habitação para espaços sempre mais amplos. Um sujeito deslocado de qualquer bolha, sem um lugar onde possa habitar, sem um grupo ou alguém que lhe inspire, acaba flutuando nessa paisagem pessimista semelhante a um Schopenhauer, a um Camus - é quando surge o estranhamento do mundo, a desconexão, e o sujeito perde vitalidade. Ainda assim, é claro, ele é capaz de grandes obras, mas não é uma existência que ele tem a vontade de celebrar.




    Fiz a pergunta porque, se a Vontade é algo diretamente ligado ao sofrimento, e a música é uma expressão da Vontade, como pode a música ser algo que atenua a experiência vital do sofrimento? Por isso acho que o sofrimento deve ter algo a ver com a negação da Vontade, e não com a sua afirmação.



    Estou de acordo com isso aqui também.



    Então, acho que cheguei a tangenciar isso aqui numa das minhas postagens anteriores, quando sugeri um indivíduo que é capaz de justificar pra si mesmo a tortura de um outro. O nazista que tortura um judeu por exemplo pode racionalizar este ato de vilania se baseando em uma suposta equanimidade em diferentes níveis: na desumanização do judeu, tanto faz, não importa se ele sofra não. Mas, colaborando com isso, também há toda uma ideologia que autoriza e libera esse nazista pra agir assim porque o judeu é responsabilizado por uma porção de outros problemas sociais, então também se trata de uma vingança. Não só não importa que ele sofra, mas ele merece sofrer, segundo esta ótica.

    Daí é perfeitamente admissível que existam certos mecanismos ideológicos vis e malévolos na maneira com que eles funcionam. Acho que o René Girard percebeu isso ao falar do mecanismo vitimário do bode espiatório: uma vítima escolhida arbitrariamente pra selar um pacto sacrificial que restaura a sociedade à situação anterior à sua crise.



    Aqui eu tentaria trazer a minha interpretação gnóstica que sugere a criação de um demiurgo malévolo e da aparição de uma luz bondosa no seio dessa criação que começa a reorientá-la na direção do bem.

    Mas aí é viagem demais, hahahaha.


    EDIT: que saco. Tinha feito uma explicação grande da obra do Peter Sloterdijk, BOLHAS, que tinha tudo a ver com o que você estava dizendo aqui. Mas perdi na edição. Agora deu preguiça de escrever de novo. Mas o lance é esse, se você não conhece, sugiro demais esse livro (volume 1 da trilogia Esferas), porque trata justamente da relação entre indivíduo e comunidade, uma espécie de nova filosofia da natureza, algo mais belo, otimista e revitalizante, pelo qual se observa o sopro de ânima formando o sujeito - e sua trajetória formando vínculos através da morada que ele faz nestes espaços seguros circulares, cuja duração é sempre finita e cuja ruptura pode ser tão traumática quanto ficar desabrigado por bolha alguma (onde então surge a sensação do estranhamento, da desconexão com o mundo, como um Schopenhauer, ou um Camus, talvez).
    Não sei se tu viu, mas pelo menos uma parte da tua exposição sobre o Sloterdjik ficou ali, mas pela edição apareceu como se fosse parte da citação do meu post. Já ouvi falar algumas vezes desse autor, mas quando peguei pra ler tive a impressão de que é um daqueles autores que exigem uma grande ambientação à sua linguagem específica, quase um Heidegger, e tenho muitas leituras na fila antes de fazer esse esforço rs. Mas nunca tinha visto a discussão dele apresentada nesses termos. Acho que vou mudar a posição na fila.

    Boa parte dessa visão que expus aparece no trabalho do A. Macintyre (é um aristotélico que discute de uma maneira muito interessante sobre o papel da comunidade e da tradição moral/política/institucional na constituição da nossa vida). Talvez te interesse.

    Sobre o ponto da arte no Schopenhauer, não saberia te responder com rigor. Mas acredito que em parte seja como comentei: a arte pra ele talvez seja algo como o que a sublimação é para o Freud. Ou seja, não é um bloqueio às forças "destrutivas", mas uma "canalização" para algo positivo, só que no caso da Vontade essa sublimação seria ainda mais rara do que no caso da pulsão do Freud. Continua sendo uma "afirmação" daquela mesma energia básica, mas sob uma forma "purificada". Não dá pra igualar as duas teorias, mas talvez essa comparação ajude a direcionar o entendimento. De qualquer forma, pra mim é muito mais fácil e realista conceber que essa mesma força básica de fato existe, mas não é essencialmente geradora de sofrimento, e que essa "purificação" também existe, mas não é uma exceção tão rara e restrita como o são os de pura experiência estética.

    Um dia desses vou pegar novamente O Mundo pra ler. Na época em que li foquei muito muito nessa perspectiva negativa. E talvez eu tenha feito um espantalho dele por desconsiderar a força desses aspectos positivos (embora, se isso aconteceu, a culpa também é dele, porque passagens como as que citei não deixam muita margem pra dúvida).

    Edit. relendo agora o post, acho muito duvidosa essa comparação entre a experiência estética pro Schop. e a sublimação pro Freud. Mas vou deixar aí hehe.
    Editado por manodoguetow em 09-04-2024 às 10:36

  9. #33

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    Minha mulher me mostrou este canal hoje. Achei legal e compartilho aqui:

    https://www.tiktok.com/@vevitolas

  10. #34

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    O que você acha dele? Acha que Deus é bom?
    Deus é BOM pelo fato de ser JUSTO.

  11. #35

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    tem que perguntar pra esse cara aqui:

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